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Quando as luzes do palco se apagam, cantores sertanejos tiram o figurino do show, fazem as malas e viram trabalhadores normais. Acompanhados de suas bandas, eles percorrem, de ônibus ou carro, os extremos do país – enfrentam até mais de 2 mil quilômetros da malha rodoviária brasileira – para cumprir uma apertada agenda de apresentações.
Deslocamentos recorrentes, sobretudo por via terrestre e em horários diversos, com todos os tipos possíveis de trechos rodoviários, deixam os artistas expostos aos riscos e às inseguranças da estrada. O Brasil já perdeu grandes ídolos da música nessas condições.
Em 1997, o cantor João Paulo, da dupla com Daniel, morreu aos 37 anos. O mesmo aconteceu com o cantor Claudinho, 26 anos, da dupla com Buchecha, em 2002. O cantor Cristiano Araújo, 29, faleceu do mesmo modo em junho de 2015. Os três artistas retornavam para casa depois de se apresentarem para públicos imensos.
No Brasil, as vítimas das turnês atuam, em sua maioria, na música sertaneja – estilo que domina não somente as rádios, como também as principais casas de shows. De acordo com levantamento exclusivo do Metrópoles, nos últimos 10 anos, aconteceram 56 acidentes com artistas nas estradas brasileiras. As colisões tiraram a vida de 51 pessoas e feriram outras 176. Entre as vítimas, prevalecem jovens adultos, com idade inferior a 40 anos, e do gênero masculino.
CARACTERÍSTICAS DAS VÍTIMAS DE
ACIDENTES NAS RODOVIAS FEDERAIS
DO BRASIL NA ÚLTIMA DÉCADA – POR IDADE
Essa situação não ocorre apenas com os grandes artistas: músicos iniciantes e em ascensão também são acometidos por esse mal. É perceptível, entretanto, a diferença entre os dois casos, especialmente no esquema de transporte. Embora as distâncias e as rodovias sejam as mesmas, há expressiva disparidade em relação à sobrecarga de funções.
Familiares, empresários ou os próprios cantores assumem o volante, em carros de passeio, para atravessar estados, visitar cidades, bater à porta das rádios e divulgar o trabalho, no intuito de obter algum reconhecimento. Ocasionalmente, artistas e duplas chegam a fazer duas ou até três apresentações em um único dia, e em cidades diferentes.
Durante dois meses, o Metrópoles percorreu 2 mil km em estradas no interior de Goiás, São Paulo e Paraná para apurar os perigos que músicos encaram para cumprir um apertado cronograma de shows. A equipe conversou com famílias de vítimas, sobreviventes e especialistas para entender como essas tragédias podem ser evitadas. Além disso, a reportagem acompanhou a turnê de artistas e testemunhou os perigos presentes na malha rodoviária do país.
?"Eu me culpo até hoje"
João Reis, pai de Cristiano Araújo
A busca pelo sucesso e os anos iniciais da carreira musical são semelhantes para a maioria dos artistas. De uma maneira geral, eles vivem de improvisos, contam com o envolvimento da família na estrada, passam noites em claro e viajam em situações precárias. João Reis Araújo, pai dos cantores sertanejos Cristiano Araújo e Felipe Araújo, chegou a dirigir veículos para deslocamento do filho mais velho, no início da carreira. Cristiano começou a cantar aos 9 anos de idade.
De Goiânia, no centro do Brasil, João percorreu longos trajetos nas rodovias para acompanhar o primogênito em sua saga profissional. Ele se recorda, por exemplo, de viagens a Rio Branco (AC) e Maceió (AL), ambos os locais a mais de 2 mil quilômetros de distância. Desde o princípio da trajetória musical do filho até o momento em que o sucesso garantiu estrutura maior de transporte, o patriarca manteve sua preocupação com os excessos de velocidade e a imprudência nas estradas.
Justo quando Cristiano "estava no melhor momento da vida dele", segundo o pai, aconteceu a tragédia. No auge da carreira, o cantor fazia de 20 a 24 shows por mês, com demanda crescente de contratantes e público pelo Brasil. Na madrugada de 24 junho de 2015, às 3h30, ao voltar para Goiânia de carro pela BR-153, após apresentação em Itumbiara (GO), o veículo capotou. Cristiano estava no banco de trás, cansado das horas extensas de trabalho, deitado no colo da namorada, ambos sem cinto de segurança. A Range Rover, recém-adquirida por ele, estava a 179 Km/h.
Esse número não sai da cabeça de João Reis desde o dia do acidente. "Eu viajava para todos os shows com ele. Nesta data, especificamente, não fui, porque o Felipe tinha uma apresentação aqui em Goiânia. Como eu estava na estrada o tempo todo, resolvi ficar. Eu sempre fui muito cuidadoso com essa questão de velocidade. Sempre que ele saía, eu ia atrás em outro carro, controlando: "Ó, vai devagar, porque eu estou atrás de vocês". Muitas vezes, a gente saía junto e, de repente, o carro sumia e eu ligava para alertar sobre isso", relata.
Reis diz se sentir culpado até hoje. Há sete anos, ele se pergunta se tudo não teria sido evitado caso estivesse junto do filho ou em outro carro acompanhando na estrada. "Eu me culpo muito. A gente nunca sabe, mas, talvez, se eu estivesse presente, com certeza estaria monitorando: "Estou a tantos por hora, por que vocês estão correndo?". Isso aconteceu várias vezes", revela.
Cristiano e a namorada, Allana Coelho Pinto de Moraes,19, morreram na tragédia. Sem cinto de segurança, ambos foram arremessados para fora do veículo. O empresário do cantor, que estava no banco do passageiro, e o motorista sobreviveram. "[Excesso de velocidade] é irresponsabilidade. É melhor chegar atrasado do que não chegar. Sempre pensei dessa forma. A vida é a coisa mais importante. Se você não dá valor à sua vida, vai dar valor no quê?", pondera João Reis.
Velocidade incompatível com os trechos de rodovia foi a segunda maior causa de acidentes nas estradas brasileiras entre 2012 e 2021, conforme registros da PRF. Assinalado como motivo principal de 115.760 ocorrências, esse fator só perde para falta de atenção do motorista e é seguido por: não manter distância de segurança em relação ao outro veículo, desobediência à sinalização e às normas de trânsito, e ingestão de álcool.
POR QUE OS ACIDENTES ACONTECEM?
20 CAUSAS MAIS COMUNS NAS BRS
Nesses 10 anos, mais de 935 mil pessoas morreram ou ficaram feridas em acidentes ocorridos somente nas rodovias federais, conforme dados da Polícia Rodoviária Federal (PRF). O diretor-executivo da Confederação Nacional do Transporte (CNT), Bruno Batista, estima que os altos índices de ocorrências nas estradas do Brasil são semelhantes aos números que países desenvolvidos tinham na década de 1970. "Estamos há uns 40 anos atrasados", analisa.
44 ACIDENTES COM ARTISTAS NAS BRs EM 10 ANOS
Segundo o último estudo feito pela CNT, que avaliou 109 mil quilômetros de estradas pavimentadas em 2021, quase dois terços das vias (61,8%) têm condições gerais classificadas como regulares (38,6%), ruins (16,3%) ou péssimas (6,9%).
Acidentes em BRs
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